Um conto policial
Murilo era um sujeito acomodado ao casamento. Casara-se com Maria Dulce por amor, e quando veio a filha, seu mundo se completou. Pouco ambicioso almejava pouco, a não ser muita saúde para trabalhar e sustentar a família. E trabalhava muito. Médico dermatologista, estabelecido num consultório no centro da cidade, tinha uma clientela cativa que já o acompanhava há certo tempo.
Maria Dulce ensinava literatura brasileira na PUC, mas quando Vanessa nasceu, pediu licença e só voltou a trabalhar cinco anos depois.
Atualmente os dois estavam cheios de trabalho e com muito pouco tempo para eles mesmos. Revezavam-se com a assistência à filha adolescente, mas era sempre Murilo, o mais presente. Era ele quem revia os deveres de casa e tirava as dúvidas. Havia dias em que via a mulher de relance. De manhã, ao café e depois das dez horas da noite, na cama. Reclamou. Maria Dulce troçou. Ficou atônito quando Vanessa, entre uma torrada e outra, vendo a mãe sair apressada, falou:
- Antigamente vocês se beijavam ao sair.
Não teve como responder.
Em pé, no metrô pensava nas palavras da filha, quando teve a atenção despertada para um par de pernas cruzadas ao alcance de sua visão. Virou a cabeça e examinou detalhadamente a mulher. Jovem, bem vestida, o salto alto fino e as meias, pretas, combinando com o tailleur de tweed, preto e branco. Perdeu-se em contemplação e ficou sem graça quando os olhos de ambos se encontraram e ela sorriu.
- Não te conheço de algum lugar? Ela perguntou.
- Não, acredito que não. Ele respondeu.
- Engraçado, por alguns minutos achei que te conhecia.
Trocaram sorrisos e ficou por isso mesmo. Olharam, ao mesmo tempo, para seus respectivos relógios de pulso. Saltaram na mesma estação. Carioca.
Nos dias subseqüentes, àquela mesma hora, ele procurou por ela nos vagões do metrô. Em vão. Duas semanas depois, ele a vê subindo pelas escadas rolantes. Quis ir atrás, tocá-la no ombro e dizer.
- Oi, lembra de mim? O cara que você achou que conhecia?
Mas ficou parado, fixando intensamente as costas dela. Ela, sentindo o peso do olhar, virou a cabeça para um lado, para o outro e continuou o caminho.
Chegando ao escritório, Valdelice, a secretária, avisou que tinha paciente nova na sala de espera. Murilo tomou um café, colocou o jaleco e mandou entrar a paciente. O susto foi grande quando a viu, mas ele se controlou e a mandou sentar.
- Agora posso dizer que te conheço de algum lugar.
Sandra sorriu.
Ela queria começar um tratamento pré-envelhecimento. Murilo a aconselhou apenas a limpar bem a pele, pelo menos três vezes ao dia, usar um bom hidratante e filtro solar. Sandra então, se lembrou que estava com uma parasita na unha do dedão do pé esquerdo. Murilo examinou, prescreveu um remédio e pediu para que ela voltasse do mês seguinte.
Ela voltou, quatro vezes seguidas. Para Murilo, cada consulta era uma tortura. Sentia-se atraído por Sandra, era sensível à sedução da mulher, mas não tinha coragem de convidá-la para sair. Havia a ética médica e Maria Dulce. Não era homem de ter casos extraconjugais. Seu casamento tinha virado uma rotina agradável: o sexo era uma prática mensal, sem muitas surpresas, a vida profissional de ambos bastante estabilizada e confortável e uma filha que embora entrando na adolescência, ainda não dava muito trabalho. Por ele, estava bom assim. Mas Sandra desafiava suas convicções. Um dia, almoçando na Confeitaria Colombo, a viu esperando na fila por uma mesa. Como a sua tinha uma cadeira sobrando, acenou e a convidou para sentar. O encontro dessa vez não foi tenso, da parte dele. Conversam muito, falaram de suas famílias e seus filhos. Sandra também era casada e tinha uma filha, Clara, de quatro anos. Ela falou de seu trabalho, era diretora de marketing de uma firma bastante conceituada, de seu marido, que trabalhava em São Paulo e só vinha ao Rio de Janeiro no fim-de-semana, e da dificuldade do dia-a-dia, com as obrigações escolares da filha e a responsabilidade no escritório.
- Às vezes acho que vou desmontar. Não sei como consigo coordenar tudo ao mesmo tempo. É dose, você não tem idéia.
Não se deram conta da passagem das horas. Foi numa pausa, depois do café, que se olharam e as palavras não precisaram ser ditas. Ele ligou para o consultório, ela ligou para o escritório. Saíram dali para o motel. Escolheram um próximo do lugar onde estavam.
Murilo pediu champanhe e começou a tirar a roupa de Sandra. Devagar e prazerosamente. Ela usava um corselet vermelho, sexy, que atiçou o desejo dele. Essa peça, ele não tirou. Então, foi a vez dela. Tirou-lhe a camisa, os sapatos, as meias e ao desabotoar a braguilha da calça, foram surpreendidos com a chegada de dois homens com toucas ninjas, que anunciaram o assalto. Chegaram gritando, esbofeteando e jogando os dois no chão e dando pontapés. O susto e o pavor pegaram o casal de surpresa. Murilo, atordoado, lutou e se atracou com um deles e conseguiu, por alguns momentos, levantar um pouco a touca e ter uma visão rápida do lado esquerdo do rosto do bandido. A cicatriz era grande em forma de lua. O bandido rapidamente recolocou a touca no lugar e deu uma forte coronhada na cabeça de Murilo que o fez perder os sentidos. Quando voltou a si, viu que Sandra chorava. Tinha hematomas nos braços, peswcoço e o cabelo estava todo desgrenhado. Todos os documentos, dinheiro e celulares foram roubados. Ele quis ligar imediatamente para a polícia. Ela pediu, pelo amor de Deus, que ele não o fizesse.
- Se meu marido souber que eu estava num motel com um homem, tira a menina de mim
- Você tem razão. E se Maria Dulce vier, a saber, também?
Não, divórcio era a última coisa que queria para a sua vida.
Na mesma semana do episódio, Murilo foi ao escritório de Sandra saber se ela precisava de ajuda. Encontrou–a profundamente deprimida e triste. As marcas do dia fatídico ainda estavam nos braços e pescoço dela. Ele sugeriu que se encontrassem para almoçar, mas ela recusou. Estava com medo e não queria se arriscar.
- Não me procure mais, por favor.
A vida de Murilo voltou ao seu ritmo normal. Uma tarde, em que algumas pacientes desmarcaram a consulta, ele acessou a ficha de Sandra. Olhou para a tela por alguns segundos, e ligou para o escritório dela.
- Por favor, Sandra Rebouças.
- Aqui não tem ninguém com esse nome.
- Como não tem? Não é o escritório da Cena Carioca Publicidade, ltda?
- É, mas não tem ninguém com esse nome.
- Como não. Já estive ai e falei com ela pessoalmente. Ela é a diretora de marketing.
- Não, o senhor está enganado.
Murilo ficou intrigado. Comunicou a Valdelice que encerrasse o expediente do dia e se dirigiu ao escritório de Sandra. Ele reconheceu a recepcionista.
- Boa tarde. Sandra Rebouças, por favor.
- A Sandra não trabalha mais aqui. Seu trabalho foi temporário.
- Mas ela não era diretora de marketing?
- Não, digitadora.
No dia seguinte, ligou para a casa dela. Quem atendeu disse não haver nenhuma Sandra naquele número. Na hora do almoço pegou um táxi e foi até o endereço que constava na ficha como de sua residência. Endereço inexistente. Achando tudo muito esquisito, Murilo ligou para um amigo advogado e marcou um almoço;
- Caio, precisamos conversar. Onde podemos nos encontrar?
- No Bar Devassa, Largo do Machado, as 18 horas.
Murilo contou a Caio tudo que estava entalado na garganta. Sandra, o roubo no motel, as agressões e o desaparecimento da mulher.
- Parece que a terra a tragou.
O amigo deu-lhe uma bronca.
- Porquê não me ligou? Você tinha que ter ido a polícia. Vamos agora no motel que vocês foram. Quem sabe, eles podem dar alguma pista.
Murilo reconheceu o recepcionista e insistiu na pergunta.
- Eu estive aqui há dois meses atrás. Você deve lembrar de mim. Deve lembrar também da minha acompanhante. Fomos assaltados aqui dentro. O senhor mesmo nos deu água com açúcar, lembra?
- Desculpe, senhor, não me lembro de nada. O senhor deve estar enganado.
- Mas há um registro. Quero ver.
Caio segurou o braço do amigo e saíram para a rua.
- Não adianta, Murilo, não é assim que se resolve. O jeito é encontrá-la de novo.
- No Rio de Janeiro? Impossível.
- Não é não. E vai ser no metrô. Esteja atento. Quando você menos esperar, você vai ver.
E foi. Num dia de muito chuva, Murilo tem a atenção desviada para um par de botas pretas. Vai subindo o olhar e reconhece a mulher. Sandra. Um homem se acerca dela e ele ouve um diálogo para lá de familiar.
- Te conheço de algum lugar?
Murilo fica nervoso. Liga para Caio.
- Encontrei a mulher. Como você falou. No metrô. Saia já do escritório e me encontre na Estação Carioca, na Avenida Rio Branco. É o tempo justo da gente chegar.
Caio estava lá quando Sandra acompanhada de um homem grisalho chegou ao último degrau da escada rolante. Murilo logo atrás, pálido e muito nervoso.
- Caio acho que caí numa cilada. A conversa que ouvi entre os dois, foi exatamente igual a que tivemos.
- Vamos seguí-los.
O casal se encaminhou para o motel. O mesmo onde Murilo tinha estado com ela. Murilo e Caio se esconderam atrás de uns carros estacionados, sem saber muito que fazer, que decisão tomar. Notaram então, dois homens corpulentos que chegaram sorrateiramente, olhando para os lados. Entraram no motel. Murilo gelou.
- Caio, estou reconhecendo aquele homem. Não é possível. Foi o cara que me atacou. Vamos entrar lá.
- Tá maluco, cara. Quer ser morto? Vamos pedir ajuda à polícia.
- Mas antes, vamos ali tomar um café. Preciso relaxar. Estou tenso. É tudo mancomunado. Hotel, Sandra e esse cara.
Murilo, muito nervoso, custou a se acalmar. Uma hora depois, dirigiram-se à delegacia mais próxima. Entraram e pediram para falar com o delegado. No meio da conversa, foram interrompidos por uma policial corpulento que acabava de chegar, fazendo barulho. Murilo virou a cabeça para olhá-lo. Viu a cicatriz em forma de lua na face do homem. Os dois mediram-se por um momento. O delegado ficou sem entender quando Murilo pegou Caio pelo braço e saíram imediatamente da delegacia.
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