Língua
“neutre” e situação de comunicação (Iran Pitthan)
Todo ato de comunicação só se inicia a partir de determinada
intenção prévia do sujeito comunicante em direção ao interlocutor em específica
situação no tempo e no espaço. Nesse processo, são utilizadas certas
estratégias para se obter resultado satisfatório em relação ao que se planeja. Qualquer
ato linguageiro, oral ou escrito, é um jogo com objetivos a serem alcançados.
Num
esforço para enfrentar o ancestral machismo brasileiro, com fortes tinturas
sexistas, apareceram tentativas de mudança, com determinados ajustes
gramaticais para a neutralização de gênero, o que abriu portas para
acaloradas discussões sobre a possibilidade da organização
de uma linguagem não-binária. Ou
neutra.
O Liceu Franco-Brasileiro, no Rio de Janeiro, se envolveu na
polêmica ao permitir que docentes e estudantes manifestem livremente sua
identidade de gênero. Já um colégio particular de Recife também causou
alvoroço, com material divulgado de sala de aula. A forma “Obrigade” e “querides alunes” seriam usadas
para fugir do binarismo masculino-feminino. Os dois casos,
acontecidos em 2020 em escolas, continuam sendo discutidos entre usuários do
Português, especialistas e palpiteiros. Alguns argumentos merecem atenção: o gênero neutro traz tratamento mais inclusivo; esse
uso vai alterar as normas da Língua Portuguesa.
Os estudos linguísticos da atualidade priorizam a língua
falada em relação à escrita por razões diversas, mas principalmente pelo fato
de que os grupos sociais humanos praticam mais o falar do que o escrever. E
havemos de considerar ainda a existência de sociedades ágrafas, que não
desenvolveram registro escrito. Na Língua Portuguesa, são considerados variados e
reconhecidos registros – popular, familiar, formal, corrente, literário – todos
relacionados ao grau de
formalidade e à situação de comunicação. Mas como torná-la “neutre”?
Tais variações são denominadas a partir de
características próprias, como: o modo de falar em diferentes regiões
(diatópicas); as diferentes idades, profissões, estratos sociais (diastráticas);
e o contexto, mais ou menos formal (diafásicas). É a partir
do uso que se compreende a Língua
como instrumento vivo e mutante, sim, mas seu processo evolutivo é muito lento,
com pequenas alterações em longo espaço de tempo, determinadas por algum grupo
social, em determinada região.
Só
a partir de um olhar atento e muita pesquisa é que se pode explicar atos comunicativos operados hoje com
tanto vigor no virtual, diante da criatividade que consente tantas semioses, tantos
diferentes “falares”. Para esta reflexão,
deve-se considerar não apenas: 1) as variantes linguísticas diante de diferentes
de culturas, regiões, status sociais num país imenso como o Brasil; 2) a questão do respeito a um grupo que não se aceita pura
e simplesmente binário de gênero; 3) a mudança de regras pétreas da língua; mas,
principalmente: 4) a boa interação (clareza, coerência, assertividade, respeito)
nos atos comunicativos.
Nesta conversa, o mais importante é se perceber a diferença entre
gênero gramatical e sexo, entre ideologias e saberes. A biologia discute a
questão do sexo, já aos estudos linguísticos cabe discutir a questão do gênero
gramatical – masculino, feminino e neutro – e seus indicativos determinantes.
Há
palavras que têm gênero gramatical masculino e não terminam necessariamente em
“o”: o cinema, o jornal, o
cóccix; e palavras com gênero gramatical feminino, sem obrigatoriamente
serem terminadas em “a” final, como a alface e a paixão. Em muitas
palavras, o gênero será determinado pelo artigo que as antecedem: a/o estudante,
a/o colegial...
A
tentativa de neutralizar o tratamento utilizando o “e” ou o “x” ou o “@” como
elementos de reorganização da linguagem pode torná-la mais inclusiva, sim, mas certamente
cria imensa dificuldade na comunicação, no falar e no escrever. Alguns adeptos
da ideia dizem que, ao se comunicarem com uma pessoa desconhecida, de quem não
se sabe o sexo, acham mais fácil usar QueridX AssociadX para evitar os
tantos toques necessários ao digitar Querido(a) Associado(a). E que,
na fala, a opção seria repetir a expressão no feminino e no masculino,
retomando Sarney: Brasileiras e Brasileiros...
A língua portuguesa, no final, não é propensa ao gênero
neutro e a transformação de uma estrutura linguística depende de fatores
bem fora do alcance de uma mudança artificial com a intenção de fugir a um
pretenso preconceito de gênero. Quaisquer mudanças no
vernáculo só podem acontecer de forma natural e tudo o que é imposto cria
mais resistência do que aderência.
Sobre
o assunto, vale a pena ler o post de Vivian Mansano no FB. O texto da
professora viralizou. Diante da discussão, acalorada, percebe-se que a
“interação”, citada no ponto 4 acima, acaba
não sendo tão “boa”, com posicionamentos nem sempre dispostos a construir o bom
debate.
O que jamais
deve ser esquecido, acredito, é a devida atenção e o respeito a toda situação
de comunicação no lugar e no momento em que ela se dá. Se os interlocutores
comungam a ideia e o ambiente é propício, tudo certo, mas se for pressentido algum
desconforto com a neutralização, isso deve ser considerado.