RENASCIMENTO

RENASCIMENTO

Sua vida estava uma merda e não percebia. Sua diversão era cortar o corpo, os pulsos e ver o sangue escorrer por suas curvas e reentrâncias. Nada muito sério que precisasse ir para o hospital. Não, a diversão era para ela mesma, o prazer do corte, da dor e de constatar o estrago depois. Uma tarde, ao se olhar ao espelho detestou o que via e achou que alguma coisa precisava ser mudada. Pegou a tesoura e começou pela franja. Não só acabou com a franja, mas com o cabelo, em poucos minutos. Completou o serviço raspando a sobrancelha. Não satisfeita, acabou com o espelho, prova viva de sua existência, estilhaçando-o em mil fragmentos.

Quando precisou sair de casa teve vergonha. O que tinha feito com ela? Não tinha idéia de sua aparência. Perguntava-se em quanto tempo nasce uma sobrancelha, o cabelo? Adiou a saída por algumas semanas. Usou o telefone como a conexão com o mundo lá fora.

Não soube precisar quando o arrependimento tomou conta dela. Foi progressivo, um pouco como a autoflagelação. Começou procurando coisas para fazer numa casa onde tudo faltava. Foi catando vestígios de sua vida. Aos poucos reconstituindo sua história. Colava suas emoções, suas tristezas e suas angústias em folhas de papel dispersas, encontradas em baixo de livros empoeirados e de catálogos telefônicos desatualizados. Organizou tudo por data. As boas lembranças vieram aos poucos. Quando um riso cristalino ecoou pela sala, levou um susto. De quem teria sido? Quando escutou o segundo, cobriu o rosto de vergonha.

Aos poucos reescreveu a sua vida. Estava pronta para abrir a porta e sair para o mundo.

A franja, o cabelo e a sobrancelha voltaram a lhe emoldurar o rosto, vivo, saído da morte.

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