A AMERICANA DO ARIZONA

A festa na casa dos Smiths prometia. O apartamento, num dos lugares mais nobres do Rio de Janeiro, o Parque Guinle, havia sido preparado especialmente para essa festa. Celebrava-se o noivado de Emily, a filha do meio do casal, com Chris da Silva, um publicitário carioca com pinta de cafajeste. Todos nós sabíamos a boa bisca que ele era, mas não tivemos coragem de dizer para ela. Também acreditávamos que ele poderia, desta vez, estar de fato apaixonado. Soubemos que não estava, e que continuava o cafajeste de sempre, quando seis meses depois terminou o noivado, e foi morar em São Paulo com uma antiga namorada. Suspiramos aliviados por Emily.

Eu tinha vindo para o Brasil num programa do Peace Corps e me encantei pelo jeito simpático dos brasileiros. Trabalhei com famílias humildes em Minas e quando vim passar uns dias no Rio de Janeiro, fiquei de tal modo seduzido pela cidade rodeada de morros e praia, que decidi que aqui seria a minha nova terra. Eu era um texano bonito, cabelos e olhos negros e bastante namorador. Transitava entre os dois sexos e naquela época estava com Edward, um brazilianist de Boston que estava a mais tempo no Brasil do que eu. Conheci-o num coquetel na casa do cônsul americano. Passamos a noite inteira conversando e percebemos que tínhamos muito em comum. Nada mais natural que iniciássemos uma relação, que foi ficando cada vez mais forte à medida que nos conhecíamos melhor. O Rio de Janeiro sempre foi uma cidade liberal, mas tínhamos cuidado em não mostrar que éramos um casal. Edward também era um homem bonito: louro, musculoso, deixava as meninas bem assanhadas. E morria de rir com isso. Em qualquer lugar que fossemos fazíamos sucesso. Mas éramos fieis um ao outro.

Quando vi Nicole entrar na ampla sala, meu coração balançou. Edward percebeu e não gostou, mas eu não liguei. Fiquei petrificado pela sexualidade felina daquela americana do Arizona, alta, delgada, sem nenhuma maquiagem, descalça, num vestido transparente que lhe deixava as costas nuas. Levava flores no cabelo cacheado, que formavam uma moldura natural para um rosto singular de soberana beleza. Ela era simplesmente deslumbrante. Nunca havia visto uma mulher assim. E não usava nada debaixo daquela roupa tão diáfana. Olhamo-nos por um bom momento. Não resistindo a tantos encantos me aproximei. Começamos a dançar. Para falar a verdade não foi bem uma dança. Eu diria que foi um ritual - o prenúncio do ato sexual. Éramos dois animais se seduzindo, se medindo. Desejávamo-nos com premência e ardor. O tempo todo eu só pensava em como levá-la para a cama. Não demorou muito e fomos nos amar no quarto de Emily. Fiquei cativo de Nicole. Não a larguei mais durante os meses que passou no Brasil. Não havia lugar para mais ninguém. Nem para Edward. Depois de alguns meses, ela foi embora. Passei um tempo depressivo, com saudades, e faltou muito pouco para que eu pegasse um avião e fosse atrás dela. Mas o meu trabalho começava a dar frutos e era importante que eu ficasse aqui. Acomodei-me.

O fato de poder transitar entre os dois sexos sempre magoava quem estava comigo. Só tive um parceiro que entendeu isso bem. Foi Terezinha, mãe de meus filhos brasileiros. Edward nunca transou com uma mulher. Para ele aceitar Terezinha e a minha bissexualidade demoraram vários anos. Eu queria casar, ter filhos, e isso nunca passou pela cabeça de Edward. E para levar meu plano casamenteiro em frente, nos separamos sexualmente, mas ficamos amigos. Ele é padrinho de meu filho mais velho e com o tempo já se incorporou à minha família. É o tio Ed.

Estou casado com Terezinha há trinta anos. E sou muito feliz. Minha carreira se consolidou no Brasil. Sou um nome conhecido no meio educacional. Fundei um instituto com o meu nome. Promovo intercâmbio com estudantes brasileiros e americanos. Viajar pelo meu programa é sinal de prestígio e segurança.

O dia em que você me telefonou dizendo que era a filha de Nicole, tive o pressentimento de que havia mais alguma coisa a ser dita. Quando lhe vi no saguão do hotel, de longe percebi que o pai era eu. Cheguei à casa abalado pelo nosso encontro. Não foi fácil dizer para minha mulher que você existia. E quando juntei as forças e falei, foi um rebuliço sem tamanho. Terezinha, apesar de ser uma mulher a frente do seu tempo, não conseguia aceitar o fato. Chorava pelos cantos. Nossa vida ficou difícil por alguns meses. Ela me evitava, os filhos se dividiram. Queriam e não queriam lhe conhecer. Consolavam a mãe e se viravam contra mim. Uma relação parecida ao amor e ao ódio, como se você estivesse roubando de mim algo que pertencia só a eles. Vivi um verdadeiro inferno familiar. Demorou muito para que o seu nome fosse pronunciado sem traumas. Seus irmãos, hoje, acham legal ter uma irmã americana. Já ouvi minha filha menor, Luísa, se referir a você com muita simpatia. E isso foi uma conquista. A minha tristeza e não lhe ter visto crescer, como vi meus outros filhos. A emoção das primeiras palavras dos primeiros passos, isso é tão importante. É um vácuo que jamais será preenchido. Mas também não culpo Nicole, foi um desejo dela de criá-la sozinha. No fundo foi um ato de extremo egoísmo. Ela sabia que eu estava apaixonado. As coisas poderiam ter sido um desfecho diferente. Às vezes apenas uma palavra muda a trajetória de uma vida. E a minha poderia ter sido mudada, se eu soubesse que tínhamos gerado um filho.

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