NÃO CUSTA NADA SONHAR



Ele odiava o barulho das bombas que vinham do morro anunciando a chegada da droga. O falso comportamento das pessoas se desejando um bom dia, quando tudo estava fora de controle e maldizia-se por morar num lugar tão pouco desenvolvido, com um povinho tão medíocre. Sua cidade estava sitiada pelo medo e governada pelo atraso. Não haveria nunca um ano feliz. Um ano promissor, como leu no jornal. Mentira. Os habitantes trancavam-se em seus bunkers e depois do toque de recolher, não se via viva alma perambulando pelas ruas. E se alguém ousasse sair, era preso e torturado pelas gangues de plantão. Até os cachorros e gatos de rua eram recolhidos, para não virarem carne de churrasco. Ele olhava pela janela e tinha dó de si mesmo. Tanto estudo para nada. O conhecimento acadêmico não era valorizado no seu país. Ele trabalhava e pagava seus impostos em dia. Para quê? Para sobreviver e ficar em dia com o imposto de renda, que entendia que seu salário minguado era renda, e descontava pra valer. Seu apartamento assemelhava-se a uma caixa de fósforos. Igual a tantas outras caixas, espalhadas por todos os bairros. Sentia-se acuado cercado por barulhos e ameaças infames. O poder paralelo tomou conta da cidade. Quem mandava agora eram os bandidos, organizados em gangue. A gangue do Complexo do Alemão, do Borel, do Vidigal e por ai vai. Todos os cidadãos eram obrigados a andarem com carteira de identidade e recibo de taxa paga para poderem circular pelas ruas. Um tipo de pedágio. No peito um distintivo vermelho e branco, que identificava o cidadão pagante em dia. Havia uma lista do que se podia e não se podia fazer. As gangues liberaram os jogos de futebol para a população. Todos podiam assisti-los de graça. Mas era importante que houvesse muito sangue, muita violência e pelo menos algumas mortes, para coroar o evento. As gangues de flanelinhas eram os responsáveis pelo estacionamento na cidade. Independentes do vínculo antigo com a Prefeitura, que era administrada por um maluco blogueiro, que vivia no computador ao invés de administrar a cidade, achacavam o cidadão e caso alguém se insurgisse contra o estipulado, tinha o carro sumariamente depredado. E não adiantava dar queixa na Delegacia. A Polícia Militar era meramente representativa. Pessoas infiltradas na redação dos jornais manipulavam as notícias e a população não tinha idéia do que realmente estava acontecendo. O governo dominado por políticos corruptos e aliados as gangues, se lixava para a cidade. A cidade fedia a urina e fezes. As praias poluídas e não mais freqüentadas abrigavam os sem-teto que acampavam nas areias fétidas. Não havia mais respeito, e quem mais sofria eram os idosos. Apedrejados por andarem devagar e estarem sempre no caminho dos que estavam com pressa, morriam nas esquinas, abandonados. A cidade ficou muito barulhenta e caótica. Quanto mais barulho se fizesse, mais as gangues apoiavam. Todos gritavam. Bibliotecas deram lugar à igrejas evangélicas, e as lojas de ruas à drogarias. Os lojistas, com medo da violência desenfreada, se espalhavam pelos andares refrigerados dos shopping-centers. Mais seguro. Pagavam caro por isso e descontavam no preço das mercadorias. O presidente dizia que ler era chato e por conta desta declaração, não se editava mais livros no país. Argumentavam que já se tinha o suficiente. As livrarias só não fecharam porque havia um pequeno grupo que resistia. E os livros, caríssimos, super taxados, só para os muito aquinhoados. Que o povo assistisse a novelas. Muito mais interessante. Uma estória contada ao vivo e a cores, e onde o mal sempre vencia. Música só funk e pagode. Proibido ouvir música clássica, para eles, música de velho. O Teatro Municipal perdeu a função. Com a Nova Ordem abrigava apenas bailes de Carnaval, agora mensais. O poder era jovem, buscava renovação.

Ele estava atento a tudo. A previsão desse caos já havia sido anunciada, há muito tempo. Mas os governos criminosos que se locupletaram no poder foram os responsáveis por essa situação calamitosa. Eles e o povo que votou nesse bando miserável. Foram todos comprados por votos de 1 real. Bando de populistas. São todos assim. Corja. Ele, no entanto não podia ir embora. Estava preso à sua terra. Fantasiava morar em outro país. Mas nem isso podia. Com que dinheiro? Sentiu raiva. “Será que eu mereço viver num país assim?” Que só pensa em carnaval e futebol?

Começou a levar a palavra às praças públicas. Sabia que era perigoso. Mas enfrentou. Seus poemas, simples e com métrica agradavam as pessoas. Todos os dias às quatro horas da tarde, ele ia para a Praça do Lido e começava a recitar. Pessoas paravam para ouvi-lo, outras já esperavam por ele. Um dia, um rapaz, timidamente pediu a palavra e recitou um poema. No outro dia, outros poetas ousaram também. Ao final de dois meses, o evento na praça estava bastante concorrido. Os poemas mudavam de tom. Denunciavam a situação vigente. Exigiam mudanças. Outros grupos formavam-se em outras praças. A poesia tomou conta da cidade. O poder da Nova Ordem deu pouca atenção ao Movimento Poético. Achou que o povo não estava educado o suficiente para apreciar Poesia, coisa de elite e de afeminados. Macho gosta é de violência, de luta e de falar palavrão. Poesia é coisa de mulherzinha. Os livreiros abraçaram a idéia e saraus literários eram promovidos nas livrarias. Pessoas se reuniam para ouvir contos e poemas. Aplaudiam. Queriam ler. Os preços abaixaram. Todos liam, nas conduções, nas filas, em qualquer lugar. As idéias revolucionárias proliferaram. O povo usava a poesia para exigir direitos. O presidente não entendia direito que demandas eram aquelas. Quando menos se esperava, o povo invadiu a sede do governo declamando poemas de Ferreira Gullar. A Nova Ordem sucumbiu dando lugar à Antiga Ordem. As gangues perderam seu poder e se esconderam nos morros, a Polícia Militar voltou a usar o uniforme com orgulho, livros foram editados, o Teatro Municipal aberto para todos, promovia concertos, balés e óperas. Os sem-tetos saíram das praias e se descobriu que muitos tinham endereço fixo. Não voltavam para casa por pura preguiça. As pessoas. mais conscientes agora, exigiam reformas e a cidade se tornou a capital nacional da poesia.

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