Era uma casa sem memória. Totalmente vazia e triste. Abandonada há décadas, estava desfigurada, com infiltrações em todos os cômodos, paredes desbotadas e manchadas, portas quebradas e o reboco do teto despencando.
Eu conhecia a casa. Afastada das demais, sempre me chamou a atenção pela sua localização: no alto de uma ladeira íngreme, no final da rua. Poucas pessoas se aventuravam a ir até lá. A subida afastava qualquer pretensão. Diziam que era assombrada. Houve um tempo em que ela foi habitada, porém pouco víamos seus ocupantes. Saiam e entravam num grande carro preto. Gente de posse. O portão da frente, de madeira e imponente, abria e fechava por controle remoto, e a murada que a cercava era muito alta. Viviam totalmente isolados. Várias estórias surgiram por conta dessa curiosidade. Inventava-se muito, mas a verdade é que não sabíamos nada sobre aquela família.
Foi numa tarde quente de outono, que vimos pela primeira vez, o portão ser aberto para dar lugar a um caminhão de mudança. Todos nós ficamos inquietos, pois era uma oportunidade única de bisbilhotar os segredos daquela casa. Nos foi permitido ver muito pouco, mas o que vimos nos maravilhou. A casa, de dois andares, era espetacular com um jardim imenso e cercada de árvores frutíferas. Os móveis já estavam arrumados dentro do caminhão, e a empregada dava as últimas instruções. A porta do caminhão se fechou, o motorista deu a partida e nós corremos ladeira abaixo.
Hoje vim ver a casa. Um espectro daquilo que foi. Uma boa reforma vai sair caro, mas talvez valha a pena. Tento descobrir, andando de cômodo em cômodo vestígios daquela família, alguma coisa que os lembre. Nada. È uma casa sem rosto. Espaçosa e ampla meus passos ecoam pelo assoalho maltratado pelo tempo. O eco, a princípio, me incomoda, mas depois de alguns minutos, soa como música aos meus ouvidos.
Tenho a atenção desviada por um solo de saxofone, no andar superior. Alguém toca Wave, de Antonio Carlos Jobim. Sempre gostei desta música. Deixo-me levar pelo som do saxe e vou subindo as escadas. O som fica mais forte à medida que me aproximo. Procuro nos quartos, vazios, o solista solitário. A música, cada vez mais alta, já começa a me incomodar. Dou um grito. A música pára. O silêncio volta a reinar. Começo a andar. Agora apenas o som dos meus passos. Sinto um frio na boca do estômago, e uma lufada de vento desarruma meus cabelos. Escuto vidraça se estilhaçando. Vou em direção do barulho. No chão de um dos quartos, estilhaços do vidro da janela. Não me lembro de estar ventando. Tempo mais maluco, esse. A música volta, forte, o saxe, desesperado chora no tema. Desço as escadas correndo e tropeço numa taboa solta. Rolo em cambalhotas e penso comigo que morri. Não vejo mais nada. Depois de um tempo, escuto uma voz ao longe, que se aproxima do meu ouvido e me sussurra coisas banais. Sou sacudido e me imploram para abrir os olhos. Não abro. Quero me ver livre da música. Ficar em paz. Vejo um carro enorme vir na minha direção. Vermelho. Em alta velocidade. De onde saiu esse carro? Vou morrer. Dou uma cambalhota e saio do alvo. A queda foi inesperada. Nunca havia caído da cama até aquele dia. Alguém na vizinhança escuta Antonio Carlos Jobim: Wave.
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